Como golpistas usam a dor alheia para aplicar estelionato digital

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Por Lúcio Mendes

 

Com a popularização das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, cresce de forma alarmante um tipo cruel de crime: os golpes digitais travestidos de pedidos de ajuda. Pacientes doentes, crianças em situação de emergência, famílias em desespero, tudo parece legítimo à primeira vista. Imagens comoventes, laudos médicos, comprovantes de internação e até vídeos são usados para reforçar a narrativa. Mas, muitas vezes, por trás desse cenário comovente, esconde-se uma rede de estelionatários que lucra explorando a empatia alheia.

Trata-se de um golpe baseado na chamada “engenharia social emocional”, técnica que manipula sentimentos para induzir decisões rápidas e impulsivas, como transferências via Pix. A imagem de uma criança com um suposto câncer raro, ou de uma mãe pedindo leite para o filho entubado, mobiliza instintos profundos de compaixão. E assim, sem checar a veracidade das informações, muitos fazem doações, e caem no golpe.

Os criminosos criam perfis falsos e usam fotos reais, muitas vezes retiradas de bancos de imagens, sites estrangeiros ou até de casos antigos verídicos. Os textos são cuidadosamente elaborados, com linguagem médica e detalhes emocionais. Para receber os valores, divulgam chaves Pix ligadas a contas de laranjas. Em alguns casos, usam nomes e CNPJs de ONGs legítimas, mas com QR codes adulterados. Quando são denunciados, apagam tudo e reaparecem com nova identidade e outra “história comovente”.

Esses golpes se disseminam especialmente em datas sensíveis, como feriados, campanhas solidárias (Natal, Dia das Crianças) ou momentos de comoção nacional. Já houve casos em que a mesma narrativa, com nomes e fotos trocados, circulou por dezenas de cidades ao mesmo tempo, pedindo doações para cirurgias fictícias ou tratamentos falsos no exterior.

O impacto vai além do prejuízo financeiro. Campanhas reais acabam desacreditadas. Famílias que enfrentam dramas autênticos passam a ser vistas com desconfiança, e instituições sérias relatam queda nas doações após a viralização de fraudes.

Segundo dados da SaferNet Brasil e da Delegacia de Crimes Cibernéticos de São Paulo, denúncias de estelionato com apelo emocional aumentaram mais de 200% entre 2022 e 2024. O número real pode ser ainda maior, pois muitos não registram boletim de ocorrência por vergonha ou impotência.

Em entrevista ao podcast Ticaracati, o delegado Carlos Afonso Gonçalves da Silva, titular da Divisão de Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de São Paulo, destacou que os crimes evoluíram não só em volume, mas também em sofisticação. Segundo ele, os golpistas usam ferramentas automatizadas, aplicam técnicas refinadas de persuasão emocional e imitam instituições legítimas com impressionante realismo.

“As investigações esbarram em barreiras como anonimato, uso de chips descartáveis e contas de terceiros. Em muitos casos, só com esforço conjunto entre polícias estaduais, federais e até órgãos internacionais conseguimos rastrear transações e identificar envolvidos”, explicou. Ele citou parcerias com provedores de internet, acordos bilaterais e trocas de dados como estratégias fundamentais no combate ao crime.

A advogada Fernanda Bueno, especialista em direito digital, reforça que o sistema ainda atua de forma majoritariamente reativa. “As vítimas de golpes na internet, em sua maioria, só buscam ajuda jurídica após já terem sofrido prejuízos financeiros ou o vazamento de dados pessoais”, alerta. Segundo ela, a prevenção é a principal arma contra fraudes. Conhecer os direitos digitais e adotar medidas de proteção com antecedência pode evitar que se caia em armadilhas virtuais. “Com o avanço dos crimes cibernéticos, é fundamental que os usuários atuem de forma proativa na proteção de suas informações online.”

 

Especialistas fazem alertas importantes para prevenção

Segundo especialistas, a maior vulnerabilidade da população está na falta de conhecimento sobre os sinais de fraude, especialmente os relacionados a phishing, sites clonados e campanhas emocionais sem qualquer transparência.

Confira algumas dicas:

– Desconfie de links recebidos por redes sociais, e-mails ou WhatsApp;

– Verifique URLs e sites antes de clicar, muitos golpistas usam endereços que imitam os originais;

– Ative a autenticação em dois fatores (2FA) para proteger suas contas;

– Nunca doe via Pix para chaves enviadas por mensagem privada sem verificar a origem.

 

Exemplo recente

Um exemplo recente – foi o caso de uma falsa campanha para tratar uma criança com leucemia. Fotos de um bebê debilitado, na verdade, retiradas de um blog médico dos EUA publicado em 2017, foram usadas em grupos de WhatsApp e perfis no Instagram. Em dois dias, o golpe arrecadou mais de R$ 18 mil via Pix. Após denúncia feita por um jornalista, o perfil foi apagado. Nenhum dos responsáveis foi identificado.

A impunidade alimenta o ciclo. Perfis temporários, movimentações bancárias pulverizadas e chips descartáveis dificultam rastreamento. Investigações exigem ordens judiciais, colaboração de bancos e tempo, o que torna a punição dos criminosos rara.

Diante desse cenário, especialistas reforçam: cautela é fundamental. Antes de doar, verifique a origem da campanha:

Existe um site oficial?

A entidade é registrada?

Algum veículo de imprensa confiável noticiou o caso?

 

Desconfie de perfis baseados apenas em apelos emocionais sem informações verificáveis. Prefira doar diretamente a hospitais, campanhas auditadas ou instituições reconhecidas.

Também é essencial denunciar perfis suspeitos às plataformas digitais e às autoridades. Isso ajuda a reduzir o alcance das fraudes e proteger outras vítimas.

A solidariedade continua sendo essencial, sobretudo em um país marcado por desigualdades e um sistema público de saúde sobrecarregado. Mas ela precisa vir acompanhada de responsabilidade, verificação e consciência digital. Doar sem checar pode parecer um ato nobre, mas, na prática, pode estar financiando o crime.

Num mundo onde a dor pode ser usada como produto e a compaixão manipulada como isca, vigiar, questionar e proteger torna-se um dever coletivo.

 

 

 

 

 

 

 



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