
Criminosos de outras cidades se deslocam, em grupo, para eventos realizados em Ribeirão Preto com o objetivo de furtar celulares.
Por Adalberto Luque
A manicure Carla (nome fictício) contou os dias e as horas para realizar seu grande sonho: assistir ao show da cantora Anitta em Ribeirão Preto. Ela comprou antecipadamente um ingresso para o evento, realizado em 26 de janeiro deste ano no Estádio Dr. Francisco de Palma Travassos, do Comercial, no Jardim Paulista, zona Leste da cidade.
“Quanto mais se aproximava o dia do show, mais difícil era dormir, com tanta ansiedade. Mas tudo virou um aborrecimento”, lamenta. A manicure até aproveitou bem o show. Chegou cedo ao local, antes mesmo da abertura dos portões.
Cantou e dançou com a cantora e seus convidados. Na hora de ir embora veio a surpresa desagradável: percebeu que estava sem o celular.
Tinha uma amiga em um camarote, com quem havia combinado de se encontrar na saída. Correu para o encontro e pediu o celular dela. Fez tudo o que precisava: bloqueou o aparelho, comunicou ao banco e deixou para fazer o boletim de ocorrência no dia seguinte.
Mas já era tarde. De alguma forma, quem furtou conseguiu destravar o aparelho e fez várias compras e até transferência bancária enquanto ela ainda estava assistindo ao show. “Sem contar o preço do aparelho, tive um prejuízo de mais de R$ 4 mil”, conta. Ela fez o boletim de ocorrência eletrônico, mas não recuperou o aparelho.
“Perdi tudo o que tinha no celular. As fotos do show foram tiradas com o celular de uma outra amiga; essas eu recuperei depois. Mas a lembrança desse show não é boa”, admite.
Acima da média
Estima-se que mais de 100 celulares tenham sido furtados no show do estádio Palma Travassos. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) não publica o número específico de furtos e roubos de celulares em suas estatísticas. Mas, pela consulta aos dados de furtos em geral, é possível deduzir que houve aumento nas ocorrências.
No site da SSP, os dados relativos ao 8º Distrito Policial (que atende à região do campo do Comercial) apontam 278 ocorrências de furto somente no mês de janeiro. Muito acima da média mensal de 60 casos, considerando o total registrado entre fevereiro e junho deste ano.
O problema é que desses 278 registros, nem todos são especificamente de celulares. Além disso, o show reuniu espectadores não só de Ribeirão Preto, mas de outras cidades e até outros estados. E muita gente pode ter registrado a ocorrência como fez Carla, através do BO eletrônico, pela internet.
Mas um grupo conseguiu rastrear pelo menos 85 celulares. Os sinais indicavam estar em cidades como Goiânia (GO), São Paulo e Guarulhos.
Outros eventos
Ribeirão Preto recebeu vários grandes eventos em 2025. A Arena Nicnet, estádio do Botafogo, foi palco de shows do Capital Inicial – Turnê Acústico 25 Anos (22 de março); Ludmilla – Turnê Numanice 2025 (31 de maio); e Gusttavo Lima – “O Embaixador Classic” (28 de junho).
No Parque Permanente de Exposições (Feapam), eventos como João Rock (14 de junho) e Ribeirão Rodeo Music (entre 26 de abril e 3 de maio) reuniram dezenas de milhares de espectadores. Já o CHF Espaço Cultural realizou o Festival Planeta Urbano em 31 de maio.
O público desses shows, em grande parte, é formado por jovens que querem aproveitar o momento e nem sempre tomam as medidas necessárias para evitar um roubo, embora os organizadores reforcem as equipes de segurança.
E as quadrilhas vêm de longe para furtar celulares. Nos dois shows realizados em 31 de maio, de Ludmilla e do Festival Planeta Urbano, várias pessoas registraram ocorrências e, ao rastrear, notaram que os aparelhos estavam em Guarulhos, região metropolitana da Capital.
Crime organizado
Grandes eventos musicais e populares têm se tornado alvos recorrentes de quadrilhas especializadas no furto de celulares. Multidão, distração do público e falta de controle em locais de grande circulação são os principais fatores explorados pelos criminosos.
A atuação segue um padrão. Em geral, grupos de dois a cinco integrantes se dividem: um ou dois furtam o aparelho, outro o recebe e se afasta, dificultando o flagrante. A ação é rápida e discreta. Em minutos, o celular já está fora do evento.
Os principais alvos são pessoas distraídas, com o celular na mão ou no bolso traseiro, especialmente durante shows, filas, entradas e saídas. A mesma quadrilha pode agir em diferentes pontos da festa. Em São Paulo, o aumento dos boletins por furto em festivais tem sido expressivo. Vítimas relatam só perceber o crime minutos depois e não conseguem identificar suspeitos.
Quando há flagrantes, os detidos costumam carregar dezenas de aparelhos escondidos em mochilas, cintas ou sob as roupas. Há casos de mais de 20 celulares apreendidos com um só criminoso. Parte é revendida no mercado paralelo; outra, enviada para outros estados ou países.
A atuação não se restringe aos shows. Fora dos locais, pontos mal iluminados e com pouca segurança também favorecem a ação. A maioria dos aparelhos furtados é de alto valor – modelos recentes, com bom preço de revenda.
As investigações enfrentam dificuldades por falta de identificação dos autores. Muitas vítimas não conseguem descrever quem estava por perto, o que reduz a chance de responsabilização. Algumas quadrilhas são reincidentes, com passagens em vários estados.
Especialistas defendem ações conjuntas entre organizadores, polícia e equipamentos tecnológicos. Câmeras com leitura facial, policiamento à paisana e monitoramento em tempo real já foram utilizados com ótimos resultados. Mas os criminosos se reinventam e desafiam a repressão.
Aumento de 11,83%
Levantamento do Centro de Estudos em Economia do Crime da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP) revela a diminuição de 1,83% nas ocorrências de furtos e roubos de celulares no Estado de São Paulo entre janeiro e maio de 2025, em comparação com o mesmo período do ano anterior.
Enquanto os roubos de celulares, que envolvem violência ou grave ameaça, apresentaram queda expressiva, os furtos, baseados na oportunidade e na distração da vítima, registraram aumento.
Segundo o pesquisador responsável, professor Erivaldo Vieira, esta dualidade aponta para mudança no perfil do crime e exige estratégias distintas.
Se os roubos caíram 10,41% entre os seis primeiros meses de 2024, comparados ao mesmo período de 2025, o mesmo não se pode dizer dos furtos. O total aumentou 5,09% em 2025.
Segundo Vieira, a dinâmica observada pode sugerir uma “migração” da atividade criminal. Com o aumento do risco e da dificuldade em cometer roubos, os criminosos podem estar optando por furtos, percebidos como de menor risco e penalidade.
“As estratégias de policiamento ostensivo e investigativo contra o roubo estão funcionando e devem ser mantidas e reforçadas. Mas o aumento dos furtos exige nova abordagem, focada em prevenção, inteligência e tecnologia”, afirma.
Ribeirão Preto, que ocupa a 8ª posição no ranking das cidades que mais registram furtos de celulares, foi a que teve o maior crescimento: saltou de 1.116 casos no 1º semestre de 2024 para 1.248 no mesmo período de 2025 — alta de 11,83%. Subiu uma posição no ranking, atrás apenas de São Paulo, Guarulhos, Campinas, Santo André, São Bernardo do Campo, Osasco e Praia Grande.
Recorde paulista
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (ABSP) de 2025, esses crimes caíram 12,6% no País, mas os números seguem altos. São Paulo respondeu por 18,5% dos casos, mesmo com apenas 5,6% da população nacional. A capital paulista teve a terceira maior taxa do país: 1.425,4 registros por 100 mil habitantes.
Houve mudança no perfil das ocorrências: os furtos passaram de 43,7% em 2018 para 56% em 2024, o que pode indicar menor uso de violência direta. Em São Paulo, 7.121 celulares foram recuperados, mas só 3.156 devolvidos aos donos, refletindo falhas na integração entre órgãos públicos.
Os furtos se concentram em comércios, residências, transportes e grandes eventos. Dados do ABSP apontam que as marcas mais visadas são Samsung, Apple, Motorola e Xiaomi — com destaque para a Apple, que, embora tenha só 10% do mercado, representa 24,3% dos aparelhos subtraídos.
Destino dos celulares
De acordo com o ABSP, os celulares roubados costumam ter dois destinos: venda local ou exportação, inteiros ou desmontados. Antes disso, criminosos tentam esvaziar contas bancárias e aplicar golpes com os dados das vítimas.
Grupos mais organizados contam com especialistas para desbloqueio, e o valor depende do modelo. Os aparelhos geralmente são repassados a receptadores ligados a facções criminosas.
Quando possível, são vendidos inteiros. Caso contrário, são desmontados e as peças revendidas em assistências técnicas, muitas vezes sem nota. Modelos fora de linha levantam suspeitas de origem ilícita. Em 2025, a Polícia Civil apreendeu mais de 8 mil celulares no centro de São Paulo — muitos, possivelmente, furtados em grandes eventos.
Outro destino é o exterior. Cargas seguem para países como Senegal, Nigéria e Índia, onde o IMEI não é checado. A exportação ocorre por avião ou contêiner, muitas vezes camuflada. Diante desse cenário, o melhor é redobrar a atenção em shows, estádios e no dia a dia.
Ações permanentes
A Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) informou que mantém ações permanentes para prevenir e coibir crimes como furtos e roubos de celulares. “Por meio de operações especializadas como a Mobile e a Big Mobile, a Polícia Civil atua não apenas na recuperação de aparelhos, mas também na repressão ao comércio ilegal e na responsabilização de receptadores – agentes fundamentais na manutenção dessa cadeia criminosa. Essas ações, somadas a outras iniciativas, contribuíram para a redução de 5% nos roubos e furtos de celulares no Estado no primeiro semestre de 2025, em comparação com o mesmo período do ano anterior”, explicou a Secretaria.
Uma das frentes mais recentes é o programa SP Mobile, que consiste em diversas ações coordenadas para redução dos crimes patrimoniais envolvendo celulares e facilitar a devolução dos objetos aos seus donos.
A partir do número de identificação (IMEI) dos aparelhos, o sistema cruza dados dos boletins de ocorrência com informações fornecidas pelas operadoras, permitindo rastrear e identificar celulares reativados após serem furtados ou roubados.
“O sistema emite notificação diretamente ao celular, intimando o usuário a comparecer à delegacia. Quem adquiriu o aparelho sem saber de sua origem ilícita pode devolvê-lo e colaborar como testemunha. Caso contrário, pode responder por receptação, conforme a apuração do caso.”