
Na sua primeira sessão de julgamentos de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade, nesta quinta-feira (1º), que o regime da separação obrigatória de bens não é mais o único disponível para pessoas que se casam ou iniciam uma união estável com mais de 70 anos de idade.
Na visão dos ministros, a regra estabelecida no artigo 1.641 do Código Civil deve ser interpretada como facultativa. Isto é, a separação obrigatória de bens continua sendo o regime padrão dessas relações, mas passou a ser possível escolher outro.
Além disso, a decisão do STF também deixou claro que a mesma norma deve ser aplicada a uniões estáveis, pois inicialmente o artigo 1.641 fala apenas de casamentos.
O tema é de repercussão geral, o que significa que o desfecho do julgamento será aplicado a outros processos semelhantes em tramitação em todo o país.
Separação obrigatória continua sendo o padrão, mas poderá ser alterada
De acordo com a decisão do Supremo, casais em que um ou os dois cônjuges/companheiros tenham mais de 70 anos de idade podem optar por outro regime de bens – como a comunhão parcial ou universal de bens – desde que manifestem isso expressamente via escritura pública.
Caso não haja tal manifestação oficial, permanece o regime da separação obrigatória de bens, com todas as suas regras originais.
Trata-se de uma lógica parecida com aquela que é aplicada aos casamentos e uniões estáveis de pessoas com menos de 70 anos e plenamente capazes, com a diferença de que, nesses casos, o regime padrão é o de comunhão parcial de bens. Para adotar outro, também é preciso fazer uma escritura pública.
Para a advogada de família Caroline Pomjé, do escritório Silveiro Advogados, trata-se de uma solução interessante por parte do STF, pois continua protegendo a pessoa idosa e seus herdeiros caso ela de fato não tenha completo discernimento por conta da idade, mas também garante que aqueles que tenham plena capacidade – o que pode ser atestado pelo tabelião ao se fazer uma escritura pública – tenham autonomia para escolher.
“A sinalização é positiva, e foi feita uma construção interessante, alinhada à tendência atual, de maior autonomia dos sujeitos. Os ministros trouxeram à tona a questão do etarismo [discriminação por conta da idade], de que assumir que alguém não pode escolher seu regime de bens por conta da idade é uma forma de discriminação”, diz Pomjé.
“Pessoas com idade mais avançada estão à frente de grandes empresas, ocupam cargos públicos e políticos. Então, por qual razão seriam incapazes de decidir qual o melhor regime de bens para o seu relacionamento?”, pondera a advogada.
A DINHEIRISTA – Serasa foi só o começo: “estou sendo processada e meus bens foram bloqueados por dívida com a faculdade”
Por que a separação de bens é obrigatória para maiores de 70 anos?
O julgamento do STF começou em outubro do ano passado a partir de uma ação que diz respeito a um inventário em que se discutia o regime de bens a ser adotado em uma união estável que se iniciou quando um dos companheiros já tinha mais de 70 anos (mais sobre isso no fim do texto).
Basicamente, a lei diz que se um ou os dois cônjuges se casarem acima desta idade, aplica-se um regime de separação de bens obrigatório, em vez da tradicional comunhão parcial de bens, que a princípio não poderia ser modificado pelo casal.
Neste regime, não só os bens de cada cônjuge não são partilháveis em caso de divórcio como também não há herança para o cônjuge sobrevivente quando um dos dois vem a falecer – diferentemente do que ocorre na separação de bens convencional, aquela que é escolhida pelo casal em pacto antenupcial, em que não há bens comuns, mas o sobrevivente concorre como herdeiro dos bens particulares do falecido.
Segundo Pomjé, na separação obrigatória pode-se abrir uma exceção para os bens deixados para o cônjuge sobrevivente em testamento e bens que tenham sido adquiridos com esforço conjunto de ambos os cônjuges, se existirem, desde que o sobrevivente seja capaz de comprovar isto.
Tal regra foi criada para proteger idosos e seus herdeiros de uniões por interesse econômico – o famoso “golpe do baú”, geralmente dado por jovens que se casam com pessoas muito mais velhas de olho no seu patrimônio após sua morte.
O que se questionava na ação de origem e foi analisado pelo STF era se tal dispositivo – que a princípio visa a “proteger” os idosos de golpistas e aproveitadores – não seria na verdade discriminatório, ao impedir que essas pessoas, mesmo sendo consideradas plenamente capazes perante a Lei, escolhessem livremente o que fazer com seu próprio patrimônio, só porque elas já passaram de uma certa idade.
Pomjé lembra que, independentemente do regime de bens da união, já existe uma proteção do patrimônio dos herdeiros, que é a legítima – a metade dos bens do falecido que deve, necessariamente, ser dividida entre os herdeiros obrigatórios.
Assim, a discussão da separação obrigatória para maiores de 70 anos pelo STF ganha importância por se tratar da autonomia das pessoas.
Origem do recurso que questiona a separação de bens obrigatória
A ação de origem do julgamento de hoje diz respeito a um inventário em que se discute o regime de bens a ser aplicado a uma união estável que se iniciou quando um dos companheiros já tinha mais de 70 anos.
O juízo de primeira instância considerou aplicável a comunhão parcial de bens. Assim, o juiz reconheceu o direito da companheira sobrevivente de participar na sucessão com os filhos do falecido, podendo concorrer para ficar com parte dos seus bens.
O magistrado declarou ainda a inconstitucionalidade do artigo 1.641 do Código Civil, que determina a separação de bens obrigatória para maiores de 70 anos, sob o argumento de que tal previsão “fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.”
Assim, de acordo com a decisão, a pessoa com 70 anos é plenamente capaz de todos os atos da vida civil, incluindo escolher seu regime de bens em uma união e fazer o que quiser com seu patrimônio.
Contudo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) reformou a decisão, aplicando à união estável do caso o regime de separação de bens obrigatória.
Para o TJ-SP, a intenção da lei é justamente “proteger a pessoa idosa e seus herdeiros necessários de casamentos realizados por interesses econômico-patrimoniais”.