Por quase um século, foi difícil não associar a imagem de Ribeirão Preto à cervejaria Antarctica. Instalada em 1911, a fábrica foi fundamental para que a cidade fosse conhecida como a capital do chope e participou ativamente do desenvolvimento econômico e do progresso local.
A Antarctica foi uma das primeiras indústrias de Ribeirão Preto. Ao lado da Cervejaria Paulista, com quem viria a se fundir em 1973, pode ser considerada responsável pela formação de uma nova classe de trabalhadores: a dos operários, mão de obra especializada para trabalhar em máquinas.
Além de ajudar a mudar o perfil da cidade, até então predominante rural, as duas empresas eram as que mais empregavam e geravam impostos em Ribeirão Preto, impulsionando significativamente a economia local.
No campo da cultura, tendo à frente o diretor Max Bartsch, figura proeminente na sociedade de então, a Antarctica usou sua influência para fomentar a fundação da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto e a criação de jornais e de diversas outras associações, marcando uma época de evolução cultural para Ribeirão Preto.
Exemplo dessa participação é o Cassino Antártica, importante e glamuroso centro de diversões para a elite local na época do café, sede de espetáculos e shows.
No futebol, teve participação ativa em praticamente todos os clubes da cidade, principalmente no Botafogo, ao qual esteve intimamente ligada desde a fundação e chegou a patrocinar os estádios e os uniformes por diversas vezes.
A Vila Tibério, onde estava a fábrica da cervejaria, também deve a Antarctica a contribuição para uma série de melhoramentos, principalmente quanto ao abastecimento de água e energia, assim como o calçamento.
Mas, como diz o ditado popular, nada é eterno. Em 1998, Ribeirão Preto começou a se despedir da Cervejaria Antarctica. O processo foi lento, aos poucos, provavelmente para diminuir o impacto na opinião pública.
A primeira ação foi a paralização gradual da produção de cerveja, carro-chefe da empresa. O anúncio foi publicado pela própria cervejaria na capa do Tribuna Ribeirão, em um anúncio que ocupou um quarto da página principal da edição de 19 de setembro.
“COMUNICAÇÃO AO PÚBLICO
A Diretoria da Cervejaria Antarctica Niger sente-se no dever de vir a público prestar os indispensáveis esclarecimentos à população de Ribeirão Preto, suas autoridades e à imprensa, tendo em vista as interpretações equivocadas referentes ao funcionamento de sua fábrica nesta cidade.
Jamais foi propósito desta Diretoria encerrar as atividades da nossa empresa, aqui instalada desde 1911.
A Antarctica, durante todos esses anos, sempre manteve o mais estreito e respeitoso relacionamento com as autoridades, com as instituições civis, religiosas e educacionais da cidade e, particularmente, com seus funcionários e clientes.
Neste momento de profundas mudanças por que (sic) passa o País, decorrente da crise financeira e econômica mundial, que atingiu de forma violenta as empresas e a população de todos os países emergentes, viu-se a Diretoria obrigada a tomar medidas preventivas exatamente para preservar o funcionamento de suas fábricas.
Assim sendo, reciclamos a produção de nossas unidades fabris espalhadas no País, deliberando, no caso de Ribeirão Preto, aumentar a produção de refrigerantes, continuar e ampliar a produção de chopp e transferir para a nossa mais moderna fábrica em Jaguariúna a produção de cervejas, até a normalização da crise que atravessamos, adequando os respectivos quadros de pessoal.
Essa situação será revista tão logo se verifique a retomada do desenvolvimento econômico do país, com maior reativação do mercado.
Cervejaria Antarctica Niger S/A
Diretoria”
Acima do informe publicitário – e oficial – da direção da Antarctica, com direito a erros gramaticais, o jornal repercutiu o anúncio com direito a chamada de capa, destacando um projeto do Legislativo para cancelar a troca de uma rua pelo prédio do Palace Hotel.
“A decisão da Cervejaria Antarctica Niger S/A pode causar a demissão de 250 funcionários. Em contrapartida, tramita na Câmara Municipal um projeto de lei que revoga a permuta entre a Prefeitura e a cervejaria de um trecho da rua Nemésio Ferreira Vianna com o Palace Hotel”.

Esse troca-troca realizado pelo governo Palocci e a fábrica, que dura até hoje, recebeu duras críticas da coluna Parabólica, assinada por José Fernando Chiavenato. “Há pouco mais de anos, ainda sob a batuta de Palocci e Cia, os ‘antarctiqueiros’ faziam juras de amor pela cidade. Entre outras coisas, para conseguir ‘fechar’ uma rua (no caso o trecho da Nemésio Ferreira Vianna, entre as ruas Castro Alves e Rodrigues Alves), encontraram um forte pretexto. Ampliariam a fábrica e gerariam novos 300 empregos. Doce piada”.
Na época, 1996, a Prefeitura pagou a Antarctica cerca de R$ 400 mil, em ações preferenciais da Ceterp, como indenização pela “diferença de valor entre os imóveis”. Dois anos depois, após o anúncio do fechamento parcial e das demissões, se reuniu com a direção da fábrica, em São Paulo, uma comitiva formada pelo prefeito Roberto Jábali e os vereadores Barquet Miguel, Cícero Gomes da Silva, José Carlos Porto e Leopoldo Paulino.
O grupo ouviu, segundo o jornal, que o fim da fabricação de cerveja e a consequente demissão de mais de 200 funcionários eram uma “necessidade”. De acordo com os integrantes do grupo, os diretores da Antarctica teriam se “comprometido em aumentar a produção de refrigerantes em Ribeirão para compensar a transferência da linha de produção da cerveja”.
Em reunião na ACIRP | Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto, Adhemar Silvestre Júnior, diretor regional da cervejaria, foi taxativo: “Não queremos, em hipótese alguma, parar de fabricar o chopp que leva o título de melhor do mundo”.
Ao final, ninguém honrou a palavra.
Lembra-se da promessa de revisão da situação “tão logo se verifique a retomada do desenvolvimento econômico do país, com maior reativação do mercado”?
A retomada do desenvolvimento econômico e a reativação do mercado vieram. O Brasil e o mundo reencontraram o caminho, o consumo de cerveja aumentou. Só faltou, mesmo, a empresa cumprir sua promessa…
Fábrica fecha totalmente as portas em 2003
O anúncio do encerramento da produção cervejeira, no último quadrimestre de 1996, foi o começo do fim.
A partir dali a unidade da Antarctica em Ribeirão Preto foi encerrando gradualmente suas atividades. Primeiro com a produção de cerveja, que teve parte da operação transferida para Jaguariúna, em 1999. Pouco depois, em 2002, foi vendida para a empresa mexicana FEMSA (Fomento Económico Mexicano, S.A.B.), que além de não investir na fábrica, reduziu a produção.
O resultado foi desativação total, em junho de 2003, pela última proprietária, a cervejaria norte-americana/canadense Molson Coors, que considerava a unidade “velha demais”. Foram, então, dispensados os últimos 140 funcionários
Abandono
Após o encerramento total da produção, a área de 52 mil metros quadrados onde funcionou a indústria de bebidas, está abandonada. Nenhum projeto foi concretizado e o local serve como abrigo a moradores de rua e usuários de droga.
Em 2012 foi anunciada a construção no local do Buriti Shopping, um centro popular de compras. Mas, somente em setembro de 2015, o antigo prédio começou a ser timidamente demolido para dar lugar ao que seria o quinto shopping da cidade. A previsão, na época, era que a primeira fase do projeto, com investimento de R$ 250 milhões, seria concluída até dezembro daquele ano.
Aprovado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Conppac), o projeto consistia em, junto à nova construção, manter tudo o que já estava tombado pelo município.
Efetivamente, o projeto não saiu do papel. Foi demolida praticamente toda a antiga fábrica, sem cumprir os termos da autorização (manter a arquitetura e construir o “Museu do Chope”. A área, há algum tempo, está à venda.
Paixão por cerveja vem de longe
A paixão do ribeirão-pretano pelas ‘loiras geladas’ é anterior à instalação da Antarctica e da Cervejaria Paulista, na primeira metade dos anos 1910.
Segundo o site Cervisiafilia, desde 1878 funcionavam na vila pequenas fábricas artesanais de cerveja. “Mas a bebida, ruim de doer, era mais utilizada como remédio contra febre”, registra o site.

A primeira fábrica a ser instalada na cidade foi a Livi & Bertoldi, fundada pelos italianos Salvatore Livi e Quarto Bertoldi, no início dos anos 1900, na atual rua Capitão Salomão.
A fábrica, que produzia os rótulos Guarani, Indiana e Mulata, chegou a ser premiada com diploma e medalha na 1ª Exposição Regional Agrícola, Industrial e Artística do 3º Distrito Agronômico do Estado de São Paulo, em 1901.
Isso, provavelmente, foi o que atraiu a Antarctica a instalar em Ribeirão Preto, em 1911.