Contradições Desérticas

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Por Fabiana Guerrelhas

Depois de alguns dias em uma viagem em família pelo Atacama, no Chile, considerei que o deserto é como algumas pessoas: extremo e contraditório.

Lagoas salgadas com gente doce. Clima seco, pouca água e humor alegre. Povoados andinos originários, anteriores à colonização, com Wi-Fi impecável.

Um lugar onde se passa calor em alta altitude, avistando a neve. O solo é pobre, mas esbanja energia solar suficiente para manter aceso todo o universo.

No deserto, exploram-se minérios e turistas — um lugar onde pouco é muito, onde os oásis são cidades em que reinam a fauna e a flora, e as cidades são oásis de recursos e conforto. Mas conforto é tão relativo quanto uma moeda de um real valer cento e oitenta pesos chilenos.

No dia em que fomos conhecer os gêiseres (fontes de água termal aquecidas pelo magma de um vulcão), tivemos que acordar às quatro e meia da manhã.

Porém, na verdade, eu nem dormi — estava com medo de passar mal. E passei mesmo: ao chegar a mais de quatro mil metros de altitude, com dez graus negativos, tive dor de cabeça, tontura, enjoo; meu nariz sangrou e senti muito frio.

Mas, ao mesmo tempo, ver as águas saltitantes, a oitenta e cinco graus Celsius, brotando da terra, me deixou extremamente feliz.

Em outro passeio, entrar em uma lagoa altiplânica gelada — com duzentos e cinquenta gramas de sal por litro d’água — fez minha pele arder e ressecar, mas foi uma grande alegria. Ser feliz não tem mesmo nada a ver com ausência de sofrimento.

A insegurança de estar em um país estrangeiro pode ser cômica. Na clássica lojinha de souvenirs, a atendente me deu uma bronca porque eu baguncei a pilha de tapetes.

Eu, desconcertada, disse: “I’m sorry, perdón, disculpa”, com a língua demorando no céu da boca — porque o portunhol é o melhor e mais honesto idioma que existe. Basta falar português usando unas palabritas conocidas, inventar otras, trocar o “jota” pelo “erre”, colocar um sotaque e pronto: está tudo cierto.

Ficar vários dias, vinte e quatro horas, com as mesmas pessoas é um desafio à parte — mesmo entre os íntimos. Descobrimos coisas que não sabíamos, e alguns defeitos conhecidos se tornam insuportáveis. Aquilo que mais te incomoda em alguém certamente vai aparecer em décima potência.

Ainda que aquelas pessoas sejam, de longe, as melhores companhias de viagem, nossa reserva de paciência e tolerância inevitavelmente se esgota — às vezes antes mesmo da primeira decolagem. E isso é tão previsível quanto o clima do deserto.

Eis aí mais uma beleza da contradição — e mais uma prova de que a felicidade não mora no bem-estar, mas no que é interessante e surpreendente.

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